Por David Biller e Michael Smith.
O Rio de Janeiro é uma cidade conturbada e que teve muitos tropeços em sua preparação para sediar os Jogos Olímpicos. Mas a Baía de Guanabara sempre foi um de seus trunfos. Recentemente a área ganhou o reforço do Porto Maravilha, uma praça pública renovada que em dias de sol está repleta de crianças mergulhando nas águas da baía. Perto dali, o Museu do Amanhã, obra majestosa do famoso arquiteto espanhol Santiago Calatrava, se impõe como o esqueleto de uma baleia na paisagem. Estas são imagens que você provavelmente verá nas transmissões da Olimpíada.
Se as câmeras se aproximassem um pouco, mostrariam que a água em que as crianças estão brincando está coberta por lixo e esgoto. O Museu do Amanhã – que tem a sustentabilidade ambiental como um de seus focos – está rodeado por água contaminada por excremento. E se as câmeras fossem mais para o alto, ficaria claro que a cidade está quase se afogando em esgoto e fezes. Camadas se espalham como nuvens escuras até a Marina da Glória, base para competições de vela e windsurf que começam em 8 de Agosto. (O estado do Rio afirma que corrigiu o problema na Marina da Glória, mas recentes fotos aéreas mostram pouca mudança.) A baía é alimentada por córregos e rios cheios de excrementos, incluindo um que passa por uma unidade de tratamento de esgoto construída na década de 1990 que nunca foi usada. Esta é uma das principais razões pelas quais o Rio é considerada uma das cidades-sede menos preparadas na história da Olimpíada.
Grande parte da candidatura do Rio para os jogos era a promessa de limpar a baía e em 2011 o estado conseguiu US$ 452 milhões em financiamento internacional para completar as obras necessárias (além dos quase US$ 800 milhões, também de fontes internacionais, na década de 1990). Mas na véspera dos jogos, apenas metade do esgoto que flui para a Guanabara é tratada. Essa estimativa oficial é comparada com a meta inicial de 80 por cento. Outros dizem que, na verdade, o número não passa de 30 por cento.
Em maio de 2015, o Rio ainda não tinha desistido da baía. Foi por isso que Priscila de Goes Pereira deixou de lado suas restrições em trabalhar para o governo e aceitou uma posição na consultoria semi-governamental responsável pelo programa de limpeza, conhecida como PSAM. O projeto não estava evoluindo. Alguns contratos tinham sido assinados, mas pouco havia sido realizado. Priscila foi uma das três consultoras contratadas para analisar as contas e contratos da empresa procurando sinais de má gestão e corrupção para fazer com que as coisas voltassem a andar na direção certa. Em pouco tempo, ela ganhou a reputação de pit bull, disposta a ser dura com colegas e empreiteiros.
Isso acontecia enquanto a situação no Brasil se deteriorava cada vez mais. A economia passou de um crescimento extraordinário em meados dos anos 2000 à recessão que se tornaria a pior em um século, em parte por causa do escândalo de corrupção na Petrobras. O estado do Rio beirava a falência e a crise política esmagava o país. Havia os US$ 452 milhões oferecidos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – mas, para chegar a esse dinheiro, era preciso passar por Priscila.
Na manhã de 5 de outubro, Priscila foi baleada 13 vezes enquanto estava sentada em seu carro, passando maquiagem. Ela estava estacionada em uma estação de metrô no bairro de classe média baixa de Maria da Graça, a caminho do trabalho. Não pareceu um assalto. Nada foi levado. Segundo a polícia, a pessoa que atirou em Priscila provavelmente conhecia a sua rotina.
Priscila era uma mulher animada, forte, que foi criada ao redor do Complexo do Alemão, onde traficantes andavam abertamente com armas e ainda o fazem. Na adolescência, ela ganhou dinheiro trabalhando em postos de gasolina, preparando salgadinhos para eventos e montando móveis em uma fábrica. “Seu sonho era ter uma vida independente, viver sozinha” disse a tia, Itaura Serrano. “Ela não queria ser agarrada à família, não queria viver na favela.” Priscila estava na faculdade em 2003, estudando geografia, quando Luiz Inácio Lula da Silva se tornou presidente. Priscila era exatamente o tipo de pessoa que o novo governo queria elevar para a classe média. Ela se tornou a primeira mulher da família a ter um diploma universitário e, com financiamentos muito mais acessíveis, a primeira pessoa da família com um mestrado.
Em 2007, Priscila foi trabalhar em uma secretaria governamental em Brasília, enquanto terminava sua pós-graduação em planejamento urbano e regional. A secretaria, com foco em desenvolvimento regional, era ligada a um dos ministérios que Lula havia inundado com dinheiro, com o objetivo de criar empregos.
Em menos de dois anos, Priscila se demitiu e voltou ao Rio. As pessoas raramente abandonam empregos públicos no Brasil, mas ela sentia falta da família e ficou frustrada com como a burocracia atrapalhava bons projetos, disse seu primeiro marido, Celso Leite dos Santos.
Ela deu aulas no departamento de geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, às margens da Baía de Guanabara. Em 2009, ela voltou a trabalhar para o governo, na secretaria de obras públicas do estado do Rio. Desta vez ela encontrou não só burocracia, mas também corrupção. Um gerente lhe disse para desviar dinheiro público para a sua conta bancária pessoal, pegar uma parte e transferir o restante para ele. Ela recusou e ligou chorando para sua tia, disse Itaura. Mais uma vez, Priscila deixou o emprego. Ela havia se divorciado do segundo marido, Bruno Palmieri, e tinha uma filha recém-nascida para criar. Ela jurou que nunca mais trabalharia para o governo.
Ela começou o doutorado enquanto continuava trabalhando em consultoria e aulas particulares. Apesar das dificuldades financeiras, os amigos sempre a encontravam sambando e tomando cerveja nos finais de semana no bar Carioca da Gema, na Lapa, seu favorito. Ela parecia tão confiante que muitos homens ficavam intimidados em tirá-la pra dançar, disse Alex Martins, garçom do bar. “Ela estava sempre sorrindo, sempre dançando. Gente muito fina”.
Até que em 2015, Priscila encontrou Flávio Silveira – os dois se conheceram quando ela trabalhava para a secretaria de obras públicas no Rio. Silveira a convidou para trabalhar para ele em seu novo posto como coordenador executivo do Programa de Saneamento Ambiental para área da Baía de Guanabara, ou PSAM.
O esgoto é tão parte da vida no Rio quanto futebol ou samba, formando poças nas calçadas e jorrando de bueiros quando chove. Na década de 1990, o BID e o Banco do Japão para Cooperação Internacional financiaram um plano para tratar o esgoto que desaguava diariamente na Baía de Guanabara. Grande parte do projeto foi gerida e executada pela Companhia Estadual de Água e Esgoto, a Cedae. Quando o dinheiro acabou, o Rio e outras cidades em torno da baía tinham novas estações de tratamento ligadas a uma rede inacabada de canos subterrâneos. Em novembro de 2006, um relatório do BID afirmou que a “debilidade institucional da Cedae’’ afetou a execução do projeto.
No entanto, o Brasil recorreu novamente ao BID após vencer a candidatura olímpica. Naquele momento, aproximadamente 11 por cento do esgoto que fluía para a baía estava sendo tratado. Representates do estado se comprometeram a aumentar esse percentual para 80. A proposta do Rio incluía a criação do PSAM, operado por três empresas privadas de consultoria, sob a égide da Secretaria do Meio Ambiente do Estado e sem participação direta da Cedae. O plano impressionou Yvon Mellinger, que trabalhou no BID como especialista líder em saneamento no Brasil. “Este foi um momento especial quando tantas coisas pareciam estar dando certo no Brasil”, disse ele, acrescentando que, do ponto de vista do banco, a distância da Cedae era essencial. Em novembro de 2011, o banco se comprometeu a fornecer o financiamento.
Flávio se juntou ao PSAM no início de 2015 e foi nomeado coordenador executivo em maio, mesmo mês em que Priscila entrou no projeto. Ela deixou de lado suas restrições sobre trabalhar no governo, em parte porque confiava em Flávio e em parte porque precisava pagar suas dívidas, disseram familiares e ex-colegas. Seu foco era garantir que os recursos do BID estavam sendo adequadamente gastos e contabilizados. Ela e sua equipe agiram como guardiões dos milhões que o BID foi distribuindo a empreiteiros, dizem os ex-colegas. Priscila logo ficou conhecida por sua agressividade, agindo a serviço de seu chefe.
Um dia, um empreiteiro apresentou um pedido de pagamento de parte do que tinha a receber antes de começar um projeto. Priscila visitou o local e viu que o trabalho já tinha sido feito – por essa empresa ou outra – e se recusou a autorizar o pagamento, segundo contou para sua família. Em outro momento, ela disse à amiga Luciana Camara que ela e Flávio descobriram “irregularidades” não especificadas em projetos e que seus esforços para evitar que ocorressem novamente estavam gerando “desconforto”.
Júnior Serrano Pereira, seu irmão mais novo, disse que Priscila havia recebido oferta de R$ 200.000 em propina para não apontar alguma irregularidade, sem mais detalhes. “Não sou assim”, ele se lembra de ouvir dela. “Não fui criada assim”.
Priscila acreditava que poderia mudar o serviço público no Brasil por conta própria, quando, no final, ela não entendia como funcionam as grandes obras em um lugar como o Rio, disse Eloisa Torres, engenheira civil que gerenciou o departamento de relações municipais do PSAM até perder o emprego neste ano.
Priscila saía do escritório, pegava a filha de 5 anos na escola e continuava trabalhando em seu laptop durante a noite em casa. No aniversário da amiga Luciana, ela ficou sentada à beira da piscina, pés na água e computador no colo.
Em agosto, ela e a família foram pescar na baía. “Sabe que esta água já deveria estar limpa?”, disse Priscila segundo seu irmão. Naquela noite, depois de o barco ter ficado preso na lama por causa da maré baixa, Priscila ajudou Júnior e seu tio Carlos a soltá-lo. O cheiro de esgoto era forte. Mesmo assim, fotos mostram todos se abraçando e sorrindo, com lama até os joelhos.
Em seu aniversário de 38 anos, em 29 de setembro, Priscila recebeu um telefonema do pai de seu ex-marido Celso Leite, Benedito Leite dos Santos. Como funcionário de carreira da Petrobras, Benedito estava familiarizado com negociações duvidosas envolvendo alguns projetos do governo. Priscila disse que pensava que poderia ser morta por alguma coisa no trabalho, disse ele ao seu filho e à família de Priscila. Ele não quis responder a perguntas para esta matéria, citando problemas de saúde.
Na noite seguinte, Priscila comentou com a amiga Luciana um assunto de trabalho. Lembrando da conversa, Luciana disse que a amiga estava séria. Priscila falou sobre um desentendimento que estava tendo com um empreiteiro que queria seu contrato estruturado de uma forma que ela achava que era errada. Ela disse não e ele exigiu uma reunião com Flávio. Flávio concordou com ela e o empreiteiro estava furioso, disse Priscila à amiga.
Mesmo assim, Priscila parecia ter rejuvenescido em sua festa de aniversário no sábado seguinte. Ela dançou, riu e abraçou todos, até mesmo seus colegas de trabalho do PSAM, que ela havia convidado, embora achasse que muitos não gostassem dela. Flávio também foi. “Tenho que viver muito, porque tenho [minha filha] pra dar conta”, disse ela antes pular com a filha na cama elástica que alugou para a ocasião.
Na manhã da segunda-feira seguinte, Priscila parou seu Renault ao lado da estação de metrô no caminho para o trabalho. Ela estava morta quando a polícia a encontrou.
Nuvens escuras de esgoto ainda podem ser vistas na Baía de Guanabara. Cerca de US$ 59 milhões dos US$ 452 milhões do BID foram gastos; contratos foram assinados por mais US$ 200 milhões em obras. Na melhor das hipóteses, cerca de metade do esgoto gerado por 11 milhões de pessoas que vai para a baía está sendo tratada. Recentemente, uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro encontrou superbactérias resistentes a antibióticos na baía, de um tipo associado ao esgoto e que causa infecções potencialmente fatais. Com a proximidade da Olimpíada, o Rio preparou botes para coletar dejetos que poderiam atrapalhar as competições. Velejadores olímpicos e windsurfistas reclamaram do cheiro.
Flávio Silveira foi recentemente substituído como coordenador executivo do PSAM por um executivo de longa data da Cedae com mais experiência em gestão de projetos. Ele está agora na Secretaria do Meio Ambiente, negociando uma extensão de dois anos do financiamento do BID, que termina em março. Ele diz que não se lembra de conflitos específicos entre Priscila e um empreiteiro pouco antes de ela ser morta. Não era trabalho dela assinar contratos e não contou para ele sobre nenhuma oferta de propina, disse Flávio. Mais cedo este ano, ele disse que não tinha encontrado corrupção significativa nos esforços de limpeza, mas tinha reorganizado alguns procedimentos que estavam causando atrasos.
A Cedae está agora totalmente no controle do PSAM. Tem “carta branca,’’ disse Jorge Briard, engenheiro civil e presidente da Cedae. Ele diz que a Cedae foi forçada a procurar dinheiro do BID para o PSAM porque o Rio está quebrado e ainda não tinha recebido ajuda federal que foi prometida.
“Eu quero obter resultados”, diz Briard. A Cedae está pedindo dinheiro do BID para vários dos seus próprios projetos, incluindo a possível instalação de uma tubulação gigante subaquática perto da entrada da Baía de Guanabara, ao lado do Pão de Açúcar. A tubulação lançaria na baía volumes enormes de águas residuais não tratadas para serem levados ao mar, contando com a ajuda das marés. Em outras palavras, a Cedae propõe acrescentar mais esgoto na baía, usando dinheiro destinado para limpá-la para a Olimpíada. Briard insiste que o tratamento de esgoto poderia chegar a 80 por cento em cinco anos, embora custaria alguns bilhões de dólares a mais.
Em maio, a polícia federal anunciou uma investigação na Cedae por supostamente cobrar milhões de moradores do Rio para tratamento de esgoto que não é realizado. Gustavo Mendez, especialista líder em água e saneamento do BID para o Brasil, não quis comentar sobre a limpeza ou a morte de Priscila. Um porta-voz do BID diz que o banco não recebeu denúncias de corrupção ou de fraude no programa do PSAM.
A investigação policial sobre o assassinato de Priscila está em seu 10º mês. O investigador de homicídios Daniel Rosa disse que a polícia tinha um suspeito relacionado à vida pessoal de Priscila, mas recentemente essa pessoa foi descartada. A investigação está agora focada principalmente em “problemas relacionados às suas relações de trabalho”, disse ele. Rosa entrevistou cerca de uma dúzia de empregados do PSAM. Ele diz que não é incomum uma investigação de assassinato durar tanto tempo e que está “comprometido em resolver este caso.”
A filha de Priscila vive com o pai. Priscila foi enterrada, sem lápide, em um cemitério a cerca de dois quilômetros do local onde um rio de esgoto ainda é lançado na Baía de Guanabara.
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