Por Suzi Ring e Patrick Gower.
A história que veio da polícia da Cidade de Londres naquela tarde foi surpreendente.
No coração do distrito financeiro de Londres, capital financeira da Europa, policiais haviam prendido um corretor na sede britânica da Archer-Daniels Midland que, segundo acreditavam as autoridades, estava lavando dinheiro para uma gangue russa.
Ainda mais impressionante: mais tarde se descobriria que pelo menos uma das empresas de trading que estariam envolvidas parecia ter vínculos distantes com o presidente russo, Vladimir Putin.
Mas o que parecia ser uma pequena vitória na longa batalha do Reino Unido contra o dinheiro sujo logo se transformou em uma investigação de um ano com direito a pistas mal interpretadas, alegações infundadas e, finalmente, reversões embaraçosas.
A história sobre como o caso foi armado — e depois desmoronou — é uma amostra desses tempos financeiros bizantinos. A exemplo de outros países ao redor do mundo, o Reino Unido luta para combater uma onda global de lavagem de dinheiro. Seis semanas após a prisão, em março de 2016, o então primeiro-ministro britânico, David Cameron, realizou uma cúpula muito acompanhada para mostrar o Reino Unido como líder no combate à corrupção. Apesar dos esforços de autoridades e de bancos, um total estimado em 90 bilhões de libras (US$ 119 bilhões) em dinheiro sujo passa todos os anos apenas pelo Reino Unido.
Mesmo os sucessos na luta do Reino Unido vieram com um senão. As autoridades multaram o Deutsche Bank em 163 milhões de libras logo depois que o banco informou que havia ajudado clientes a tirar cerca de US$ 10 bilhões em recursos suspeitos da Rússia por meio de Londres em um período de três anos. E foi necessário um trabalho jornalístico do Projeto de Reportagem sobre Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, na sigla em inglês), em 2014, para que fossem investigados cerca de US$ 20 bilhões tirados da Rússia por meio da Europa vinculados a uma rede denominada Global Laundromat.
Apreensão recorde
O caso em questão do distrito financeiro de Londres passa por diversas firmas de trading obscuras, pela gigante de commodities ADM e pela Intercontinental Exchange, que opera mais de uma dúzia de bolsas e mercados de valores, entre elas a venerável Bolsa de Valores de Nova York.
As autoridades apreenderam US$ 22 milhões — supostamente uma das maiores apreensões de dinheiro suspeito na história policial do distrito financeiro de Londres –, mas posteriormente saiu à luz que o haviam feito ilegalmente.
Esta reportagem se baseia em arquivos judiciais, documentos e entrevistas com pessoas envolvidas no caso que pediram para não serem identificadas porque a investigação terminou e alguns detalhes não vieram a público.
A história começa em maio de 2015, quando a ICE notificou as autoridades britânicas sobre possíveis negociações suspeitas no mercado de futuros de petróleo. A atividade envolvia uma firma de trading registrada nas Ilhas Virgens Britânicas, a Bunnvale, e duas empresas russas de trading de petróleo sobre as quais a operadora da bolsa pouco sabia a respeito — um alerta imediato para os investigadores.
’Explicações inocentes’
A Bunnvale estava ganhando dinheiro constantemente com negociações com as duas empresas, segundo o relatório da ICE, que foi visto pela Bloomberg News. Embora tal comportamento muitas vezes ocorra em casos de front running ou de lavagem de dinheiro, era possível que existissem “explicações inocentes” para os fatos, observou a ICE.
Uma das firmas, a Merida Oil Traders, está ligada a Vladimir Kogan, um homem de negócios antes conhecido como banqueiro de Putin devido à sua participação em um banco no qual Putin tinha uma poupança pessoal, segundo pessoas familiarizadas com a firma. A outra, chamada Intoil, está ligada ao bilionário russo Sergei Kislov. Porta-vozes de Kogan e Kislov preferiram não comentar o assunto.
A ICE informou à Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido (FCA, na sigla em inglês) que um corretor da ADM parecia participar da trama.
E assim o processo foi iniciado. A FCA entregou o caso à polícia do distrito financeiro de Londres, que abriu uma investigação em fevereiro de 2016. Um mês depois, policiais à paisana prenderam Dzmitry Niadzvetski ao entrar no edifício do escritório da ADM com vista para o rio Tâmisa, logo após o amanhecer.
Caiu por terra
O caso começou a desmoronar praticamente desde o princípio. Niadzvetski, que as autoridades afirmavam ser russo, na verdade era britânico e bielorrusso. A polícia tomou a medida incomum de forçar a ADM a preencher cheques para cobrir US$ 22 milhões em contas congeladas. Três das quatro empresas entraram com processos judiciais, alegando que a polícia agiu ilegalmente. Surgiram questionamentos em relação à informação que um dos detetives envolvidos concedeu ao juiz que autorizou a apreensão.
Mesmo com tudo isso, a polícia do distrito financeiro de Londres jamais revelou a identidade da suposta quadrilha russa. As autoridades tampouco informaram qual crime foi cometido, se é que houve algum.
Finalmente, após um ano de pistas falsas e indícios que não levaram a lugar algum, o caso foi discretamente encerrado.
Niadzvetski disse que sua experiência mostra “como as coisas podem ser facilmente mal interpretadas”. Ele acrescentou que o processo fez com que sua “reputação profissional e pessoal fosse manchada e destruída por nada além de falsas alegações ’circunstanciais’ baseadas na manipulação equivocada de informações”.
Jasvinder Nakhwal, advogado que representa a Bunnvale e a empresa Ticom Management, do mesmo grupo, classificou o comportamento da polícia no caso como “extremamente lamentável”. O processo pareceu se sustentar nas nacionalidades das empresas, e não em evidências concretas, disse o sócio do escritório Peters & Peters.
’Agradecidos pelo esclarecimento’
“É difícil entender por que a polícia usou um mecanismo ilegal para apreender recursos de nossos clientes, exceto como um meio de evitar o escrutínio judicial de alegações que parecem ter sido mais baseadas no fato de as empresas serem em grande parte russas do que em qualquer evidência”, disse Nakhwal.
Porta-vozes da ADM e da ICE preferiram não comentar, assim como um advogado da Intoil. Um advogado de Merida não respondeu aos pedidos de comentários.
A polícia do distrito financeiro de Londres confirmou que a investigação foi encerrada, mas preferiu não fazer comentários adicionais. Em abril, depois que um tribunal ordenou a devolução do dinheiro, uma porta-voz da agência afirmou que os policiais estavam “cientes de que este era um caso incomum sem precedentes legais a seguir”, acrescentando que estavam “agradecidos pelo esclarecimento dado ao assunto pelo tribunal”.
A enormidade de dinheiro questionável que passa por Londres e a tentativa atrapalhada de apreender US$ 22 milhões evidenciam os problemas maiores das autoridades encarregadas de combater a lavagem de dinheiro.
“Centenas de bilhões de libras são lavadas por meio de bancos britânicos ou de suas subsidiárias em todo o mundo, e centenas de milhões de libras em imóveis em Londres são mantidos por meio de fundos suspeitos”, disse Murray Worthy, ativista sênior que trabalha em questões de lavagem de dinheiro para a Global Witness, um grupo sem fins lucrativos com sede em Londres. Ele elogiou as novas medidas destinadas ao combate à lavagem de dinheiro, mas afirmou que o Reino Unido e o distrito financeiro de Londres ainda têm muito trabalho pela frente.
“Apesar de termos visto um progresso muito bom, ainda estamos muito longe de impedir que o Reino Unido desempenhe esse papel”, disse Worthy.
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