Saga WhatsApp no Brasil opõe Justiça e direitos

Por Mac Margolis.

As empresas de tecnologia que procuram clientes no mercado de mensagens instantâneas têm bons motivos para cortejar o Brasil — 93 milhões deles, na verdade.

Essa é a quantidade de pessoas que utilizam o serviço de mensagens WhatsApp neste país de 202 milhões de habitantes. Por isso, quando um juiz ordenou a prisão do vice-presidente para a América Latina da empresa controlada pelo Facebook, brasileiros irritados pegaram seus telefones. O executivo, Diego Dzodan, foi rapidamente liberado após apelação, mas o calvário foi um lembrete do que está em jogo quando os serviços globais de tecnologia chocam com as leis locais e dezenas de milhões de cidadãos sofrem as consequências.

O problema começou em 1o de março, quando a Polícia Federal prendeu Dzodan porque o Facebook não havia cumprido uma ordem judicial para fornecer dados do WhatsApp, incluindo mensagens entre membros de uma suposta quadrilha criminosa brasileira. Os detalhes do caso não foram revelados ao público, mas a decisão do juiz Marcel Maia Montalvão pontuou que a empresa havia ignorado três pedidos para compartilhar documentos com a polícia, apesar de multas diárias que chegavam a cerca de US$ 250.000.

Dzodan respondeu que como o WhatsApp não armazena mensagens, nem espiona seus clientes, não poderia cumprir a ordem — sem contar que o aplicativo opera de forma independente em relação ao Facebook.

Esse foi o terceiro confronto do WhatsApp com a Justiça brasileira no último ano. Em dezembro, outro juiz ordenou que o serviço de mensagens saísse do ar por 48 horas porque a empresa não entregou mensagens de clientes para ajudar as autoridades a reprimirem um caso de tráfico de drogas, mas uma instância superior anulou a decisão. Esse breve blecaute do aplicativo provocou protestos em todo o país e forçou os clientes que ficaram fora do ar a usar serviços concorrentes.

As exigências da Justiça brasileira são suficientemente razoáveis: se o volume de dados pode ajudar a perseguir criminosos perigosos, com certeza as provedoras digitais e as autoridades judiciais precisam encontrar uma forma de cooperar sem pisotear a privacidade dos clientes. Em vez disso, a busca por terreno comum deu lugar a uma disputa entre um Estado que extrapola seus limites e uma empresa internacional praticamente intocável — o WhatsApp não tem escritório no Brasil, deixando para o Facebook a tarefa de responder às autoridades — e cada um deles está testando limites em uma terra onde as regras do engajamento digital são um trabalho litigioso em andamento.

Sob muitos aspectos, a batalha no Brasil lembra as tentativas do FBI de forçar a Apple a desbloquear um iPhone encontrado com um dos suspeitos do ataque terrorista de San Bernardino, na Califórnia, em dezembro.

O Brasil esperava evitar um impasse do tipo com uma lei de regulamentação da internet com visão de futuro, aprovada em 2014 após uma década de debate. Uma das principais preocupações é como tornar as corporações internacionais, livres e soltas, responsáveis perante a lei local. A solução foi exigir que os provedores internacionais de serviços de internet armazenem seus arquivos dos clientes locais por seis meses caso surja algum problema legal no Brasil.

Mas é mais fácil falar do que fazer. Desde que Edward Snowden expôs como a National Security Agency monitorava as comunicações em todo o mundo, incluindo o smartphone da presidente brasileira, Dilma Rousseff, os provedores digitais começaram a criptografar as mensagens de seus clientes para evitar a ação de espiões e hackers — o que, segundo o WhatsApp, torna impossível a entrega dos dados.

É claro, isso coloca o WhatsApp em rota de colisão com a lei. E nos tribunais brasileiros, o campo de jogo digital favorece o Estado. “O Brasil tem uma lei de retenção de dados, mas nenhuma para proteção de dados individuais”, disse Cláudio Lucena, advogado brasileiro especializado em informações digitais da Católica Global School of Law, em Lisboa. “Isso nos coloca décadas atrás da Europa e dos EUA”.

A verdade é que a maioria dos países está lidando com o mesmo tipo de problema incômodo para definir os limites entre liberdade e aplicação da lei, colocando o direito à privacidade contra o imperativo da transparência. O problema é que os brasileiros estão fazendo isso em meio a um escândalo de corrupção política sem precedentes e à pior recessão em um século, o que capturou as atenções políticas e sabotou praticamente todas as iniciativas para políticas mais prementes.

Isso deixa o judiciário com uma influência possivelmente desproporcional sobre os conflitos que devem ser debatidos pela sociedade, disse André Correa, especialista em privacidade e transparência corporativa da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo.

Por isso, não espere que haja uma trégua tão cedo, nem muita coerência, no campo de batalha digital. “Quanto mais demorarmos para estabelecer regras claras a respeito dos direitos e obrigações digitais, mais estaremos presos aos caprichos da Justiça”, disse Lucena. “Multiplique isso por centenas de milhões de usuários de internet e 16.000 juízes, e você tem potencial para o caos”.

Esse é um bom assunto para uma mensagem de texto.

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