Um recomeço? Regulamentação do mercado financeiro do Reino Unido após o Brexit

Artigo escrito por Christian Benson, especialista de assuntos regulatórios da Bloomberg.

Após sua saída da União Europeia, o Reino Unido tem repensado e recalibrado sua abordagem regulatória no que tange aos serviços financeiros e aos mercados de capitais. Este texto apresenta um breve resumo das principais iniciativas regulatórias que orientam a nova direção do Reino Unido para a reforma do mercado de capitais.

Existem três iniciativas significativas em andamento para garantir que o arcabouço regulatório do Reino Unido reflita melhor as necessidades específicas do país e seu status como centro financeiro global. Especificamente, a Wholesale Markets Review (WMR; Revisão dos Mercados Atacadistas, em tradução livre), o Financial Services and Markets Bill (FSMB; Projeto de Lei de Serviços Financeiros e Mercados, em tradução livre) e as Reformas de Edimburgo são iniciativas que evidenciam o nível de mudança atualmente em curso para a regulação dos serviços financeiros no Reino Unido.

Entre estas três iniciativas, há áreas significativas de sobreposição conforme formuladores de políticas e reguladores avançam em direções diferentes rumo a uma estrutura regulatória final.

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Revisão dos mercados atacadistas (HMT)

Após a saída oficial do Reino Unido da União Europeia, o Ministério das Finanças, HM Treasury (HTM), publicou sua Revisão dos Mercados Atacadistas (WMR) em julho de 2021. A WMR esboça propostas para uma reforma do regime regulatório de serviços financeiros do Reino Unido e indica que o país enfatizará a abertura, competitividade e proporcionalidade na regulamentação de seu mercado de capitais.

No entanto, seria equivocado descrever a WMR como algo próximo a uma “supressão regulatória” da legislação herdada da UE. O papel de liderança do Reino Unido no desenvolvimento de grande parte do arcabouço financeiro da UE sempre denotou a improbabilidade de uma reelaboração completa das regras. Em vez disso, a WMR indica que o Reino Unido está adotando uma abordagem mais direcionada, utilizando sua nova margem regulatória para ajustar e adaptar, em vez de eliminar drasticamente. Isto permite que o Reino Unido remova legislações que não funcionaram conforme o previsto ou que já não são relevantes para uma única jurisdição. Ênfase foi colocada na eliminação de encargos para as empresas. De certa forma, a WMR pode ser vista como equivalente à revisão em andamento da Regulamentação de Mercados de Instrumentos Financeiros (MiFIR) na União Europeia, uma vez que aborda basicamente as mesmas questões – embora com algumas diferenças importantes.

Estes são alguns dos principais componentes da WMR:

  • Definição de plataforma de negociação: esclarecimento da definição atual de “plataforma de negociação” que rege o limite entre plataformas de negociação e sistemas bilaterais.
  • Conflitos de interesse na negociação: avaliação das restrições existentes que regem os conflitos de interesse entre sistemas de negociação multilateral (MTFs) e sistemas de negociação organizada (OTFs).
  • Interrupções: as plataformas de negociação e os participantes do mercado serão obrigados a implementar um manual de resposta e recuperação no caso de interrupções.
  • Regime de Internalizador Sistemático (SI): retorno a uma definição qualitativa do conceito de Internalizador Sistemático (SI) com determinação no nível de entidade.
  • Reforma do mercado de ações: abolição da obrigação de negociação de ações (STO) e do limite de volume duplo (DVC) que restringe negociações realizadas fora de plataformas (“dark pool”).
  • Reforma da transparência não patrimonial: recalibração do regime de transparência pré e pós-negociação para os mercados de renda fixa e de derivativos.
  • Critérios de transparência para derivativos de balcão (OTC): retirada do conceito de “negociado em uma plataforma de negociação” (ToTV) para transações de derivativos de balcão e conversão da compensação central como o principal critério de elegibilidade para transparência.
  • Regime de commodities: reformulação do regime de commodities e revogação da exigência de limites de posição a serem utilizados para todos os contratos negociados em bolsa.
  • Sistema consolidado: alteração do regime de dados de mercado para facilitar a criação de um sistema (tape) consolidado comercialmente viável.
  • Identificação: verificação da existência de identificadores melhores do que os ISINs para derivativos.

Seguindo o feedback do setor, em março de 2022, o HMT publicou uma resposta oficial à sua consulta e se comprometeu a levar adiante um pacote de reformas. Especificamente, o HMT destacou uma abordagem mais simples para determinar o status de SI, um regime de transparência mais evidente e mais esclarecimentos sobre o perímetro da plataforma de negociação.

Revisão dos mercados atacadistas (FCA)

Embora alguns dos itens da WMR sejam implementados por meio de legislação primária, a maioria foi delegada à FCA (sigla em inglês para Autoridade de Conduta Financeira) com o objetivo de transformar muitas das intenções de políticas em requisitos técnicos a serem implementados pelo setor.

Este processo teve início no verão de 2022, quando a FCA fez uma consulta sobre reformas na estrutura do mercado de ações, juntamente com mudanças mais amplas, incluindo a criação de um novo regime de relator designado para o regime de transparência pós-negociação. A FCA também propôs diretrizes sobre interrupções em plataformas de negociação que abrangem protocolos de comunicação e monitoramento. Uma declaração de política é esperada ainda este ano.

No outono passado, a FCA também fez uma consulta sobre as diretrizes para o escopo das plataformas de negociação; mais anúncios sobre este assunto estão previstos ainda este ano.

No que diz respeito à reforma da estrutura de mercado (exceto para ações), esperamos que a FCA publique propostas para mudanças no regime de transparência do Reino Unido para instrumentos de renda fixa e derivativos no fim deste ano.

Por fim, em consonância com o compromisso do HM Treasury de estabelecer um regime de sistema consolidado até 2024, a FCA realizará consultas neste verão sobre propostas para um regime de sistema consolidado de títulos (consolidated tape, CT), e a prioridade será para títulos e ações.

Projeto de Lei de Mercados e Serviços Financeiros do Reino Unido

O Projeto de Lei de Mercados e Serviços Financeiros (FSMB) abrange os arranjos institucionais relacionados ao impacto da saída do Reino Unido da União Europeia na elaboração das regras relativas aos serviços financeiros.

Anunciado pela primeira vez no verão de 2022, o FSMB foi projetado para revogar vários elementos da legislação da União Europeia, com o objetivo de estabelecer uma estrutura regulametnar mais proporcional para os serviços financeiros no Reino Unido. Como parte desse novo arranjo institucional, os reguladores financeiros do Reino Unido receberão objetivos secundários para facilitar a competitividade internacional da economia do país. Além disso, o Parlamento do Reino Unido deve exercer um controle mais rigoroso e se envolver mais estreitamente com os órgãos reguladores financeiros como parte da nova arquitetura regulatória.

O Projeto de Lei também contém elementos da Revisão dos Mercados Atacadistas (WMR) que exigem que a legislação entre em vigor, incluindo:

  • Definição de SI – Retorno a uma definição qualitativa de Internalizador Sistemático (SI) e fornecer à FCA o poder de especificar como a nova definição deve ser interpretada.
  • Cruzamento de ponto médio – Permitir que os SIs executem ordens de clientes de forma mais flexível, ou seja, no ponto médio entre a melhor oferta de compra e venda para negociações abaixo do LIS (large in scale).
  • Limite de volume duplo (DVC) – Remoção do DVC, que limita o nível de negociação fora de plataformas (“dark pool”), das recomendações da MiFID II. A FCA será obrigada a monitorar os mercados do Reino Unido para continuar sua própria pesquisa sobre a avaliação dos impactos da negociação sem transparência pré-negociação.
  • Obrigação de compartilhamento de negociação (STO) – Remoção da STO para que empresas possam negociar ações em qualquer plataforma de negociação no Reino Unido ou no exterior com qualquer contraparte ou no mercado de balcão (OTC).
  • Realinhamento do escopo da DTO e CO – Realinhamento formal das contrapartes (incluindo entidades financeiras, não financeiras e análogas de países terceiros) abrangidas pela obrigação de negociação de derivativos (DTO) com aquelas abrangidas pela obrigação de compensação (CO) na EMIR.
  • Isentar serviços PTRR da DTO – Expansão das isenções que atualmente se aplicam à compressão de portfólio para outros serviços de redução de risco. Para garantir que os serviços adequados sejam cobertos pela isenção, o projeto de Projeto de Lei concede à FCA um novo poder de criação de regras para especificar quais serviços de redução de risco pós-negociação (PTRR) podem se beneficiar das isenções listadas acima, bem como das condições associadas ao seu uso.
  • Isentar serviços PTRR da CO – A Lei também concede ao BoE (Bank of England) um poder semelhante de criação de regras, para que os mesmos tipos de serviços possam, se apropriado, ser isentos também da CO. O banco poderá especificar os serviços de redução de risco pós-negociação que se beneficiarão de uma isenção da CO.
  • Limites de posição – Revogação da exigência de que a FCA aplique limites de posição a todos os contratos de derivativos de commodities negociados em uma plataforma de negociação e contratos OTC economicamente equivalentes, e transfere a responsabilidade de definir os limites de posição da FCA para as plataformas de negociação.
  • Escopo da DTO – A Lei concede à FCA um novo poder permanente de modificar ou suspender a DTO, sujeito à aprovação do HM Treasury, para prevenir ou mitigar interrupções nos mercados. Este poder permitirá que a FCA faça alterações na DTO em relação às contrapartes sobre as quais ele é imposto; quais derivativos estão incluídos em seu escopo; e as plataformas onde as transações devem ser concluídas pelas contrapartes abrangidas pelo DTO.
  • Sistema consolidado (CT) – Capacitação da FCA para estabelecer exigências para fornecedores de sistemas consolidados (consolidated tapes) com o objetivo de facilitar o desenvolvimento de um ou mais sistemas.
  • Regime de isenções de transparência pré-negociação – O Projeto de Lei revoga o sistema existente de isenções dos requisitos de transparência pré-negociação e, em vez disso, concede à FCA novos poderes de criação de regras para determinar em quais circunstâncias as isenções estão disponíveis e quaisquer condições devem ser associadas ao seu uso.
  • Regime de transparência para instrumentos exceto ações – Reduzir a complexidade do regime atual e garantir que os instrumentos corretos estejam dentro do escopo, delegando à FCA a responsabilidade pela calibração do escopo e dos requisitos de transparência voltados para as empresas.

A FSMB está chegando ao fim de sua jornada legislativa no Parlamento do Reino Unido, após ter sido aprovada pela House of Commons no ano passado e agora estar na House of Lords. Espera-se que o projeto se torne Lei antes do fechamento do Parlamento para o recesso de verão.

Reformas de Edimburgo

Por fim, como um elo entre o trabalho da WMR e do FSMB, em dezembro passado, o chanceler do Reino Unido, Jeremy Hunt, anunciou um pacote substancial de reformas regulatórias para os serviços financeiros do Reino Unido, conhecido como “Reformas de Edimburgo”. Isto constitui uma parte importante do trabalho legislativo e de políticas mais amplo para repensar os serviços financeiros do Reino Unido pós-Brexit e contém uma ampla gama de iniciativas projetadas para tornar o Reino Unido um centro de serviços financeiros mais atrativo, adequado e voltado para o futuro.

Por exemplo, os itens relacionados à Revisão dos Mercados Atacadistas incluem o seguinte:

  • Sistema consolidado: comprometimento com o desenvolvimento de um regime para um sistema consolidado no Reino Unido até 2024.
  • Nova classe de plataforma de negociação intermitente: o governo trabalhará em conjunto com os órgãos reguladores e participantes do mercado para testar uma nova classe de plataforma de mercado atacadista que operará de forma intermitente, a fim de ajudar a preencher a lacuna entre os mercados públicos e privados. A esperança do governo é que este novo tipo de plataforma permita que as empresas acessem investidores globais antes de estarem prontas para se tornarem empresas de capital aberto e, por sua vez, dê aos investidores acesso a algumas das empresas mais promissoras mais cedo do que seria possível.
  • Regime de relatórios para investidores: o governo implementará as mudanças no regime de relatórios para investidores nas quais o HMT fez consultas como parte da WMR. As mudanças no SI eliminam a exigência para empresas informarem os clientes de varejo quando o valor total de seu portfólio cair 10% e tornam a comunicação eletrônica o método padrão de comunicação para clientes de varejo.

Além da WMR, as reformas de Edimburgo também incluem uma série de itens relacionados ao cenário mais amplo de serviços financeiros, incluindo:

  • Reforma da pesquisa de investimentos: estabelecimento de uma Revisão Independente de Pesquisa de Investimentos para avaliar a contribuição da pesquisa de investimentos para a competitividade dos mercados de capitais do Reino Unido. Isto incluirá, mas não se limitará aos efeitos das regras de desagregação do MiFID da UE e faz parte do compromisso mais amplo do governo de melhorar a capacidade do Reino Unido de atrair empresas para sejam cotadas em bolsa e se desenvolvam.
  • Regime de gerentes seniores e certificação: o governo iniciou sua revisão para reformar o Regime de Gerentes Seniores e Certificação (SM&CR) no primeiro trimestre de 2023. O HMT está preocupado que o SM&CR seja uma barreira para o talento de alto nível e impeça que figuras de destaque se mudem para o Reino Unido.
  • Revogação do PRIIPs: revogação do Regulamento de Produtos de Investimento Embalados e Baseados em Seguros (PRIIPs) e consulta sobre uma nova abordagem para divulgação de informações ao varejo no Reino Unido.
  • Liquidação: estabelecimento de uma Força-Tarefa de Liquidação Acelerada para explorar o potencial de acordos mais rápidos de negociações financeiras no Reino Unido, como a transição para um período de liquidação padrão de T+1. Conclusões iniciais a serem publicadas até dezembro de 2023, com relatório completo e recomendações até dezembro de 2024.
  • Separação de serviços bancários: reforma do regime dos principais serviços bancários, seguindo as recomendações do painel independente para reformas modestas e sensatas, além de consultar sobre a recomendação mais significativa de retirar os bancos da separação bancária quando eles forem totalmente solucionáveis.
  • Finanças verdes: o governo publicou uma Estratégia de Finanças Verdes atualizada no início de 2023 e está consultando sobre a inclusão de fornecedores de ratings ESG no perímetro regulatório.

Direção futura

Embora muitas das iniciativas e implicações de mercado associadas com a WMR, o FSMB e as “Reformas de Edimburgo” ainda não tenham entrado em vigor, à medida que o processo de formulação de políticas se intensifica, os participantes do mercado deverão ver reformas tangíveis mais cedo do que o previsto. Além disso, fora dos três principais fluxos de trabalho de reforma regulatória, existem várias outras iniciativas pós-Brexit – de cotações em bolsa até reformas na área de seguros – que terão importantes implicações para os participantes do mercado do Reino Unido. À medida que a dinâmica política e setorial em favor da reforma regulamentar se intensifica, as exigências materiais impostas às empresas e a forma como as políticas são desenvolvidas devem mudar significativamente nos próximos anos.

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